domingo, 26 de dezembro de 2010

Espelho Mágico


Minha irmã é uma moça calada.

Minha irmã faz faculdade de psicologia, creio, para entender melhor a si. Segundo a própria, que ouvi explicando à minha mãe, essa é uma ilusão recorrente aos estudantes de psicologia.

Sempre invejei minha irmã.

Ela com seu nome forte, sua mudez de irmã caçula que não participa das preocupações familiares.

Minha irmã e suas coisas são por mim percebidas.

Presenteio-lhe com livros de Freud, leio seus textos de Heich, leio também suas revistas de psicanálise.

Minha irmã não me vê.

Ignora que haja na casa alguém que adoraria discutir sobre “Luto e Melancolia”.

Passa por mim como quem passa por cima do gato sonolento, deitado no tapete da sala de estar. 

Com a diferença que não me roça a cabeça com sua mão cheia de anéis.

Não tenho tempo e nem disposição [assim dizem as pessoas bem sucedidas] para buscar esse amor fraternal ou, como eu ouviria no divã, não preciso mendigar por esse tipo de atenção.

Minha irmã fica sendo, então, só uma das partes da casa, sem maior importância que o gato, sem menor importância que o tapete onde ele se deita.

Às vezes penso ver nos olhos de minha irmã certa satisfação por ser mistério, mas também poderia ser uma sombra gerada por uma indisposição estomacal. A mim não interessa mistérios. Não tenho paciência...

Comumente lembro mais de minha irmã porque, como já ousei admitir: a invejo...

Há nós que se aparam.

Tenho o costume de depois do banho, na intimidade do mormaço do banheiro, escrever no vidro embaçado. Essa espécie de diário vaporoso era extremamente reservada, pois em casa cada um tem seu banheiro.

Chuveiros queimam.

E o chuveiro do banheiro do quarto da minha irmã queimou. Sem perguntar, ela tomou banho no meu.

O novo mormaço de uma água quente que lavou aquele corpo desconhecido ao banheiro e a mim, revelou a frase que eu tinha escrito depois do banho nº 03 da manhã [esqueci de dizer que tomo 10 banhos por dia, o que me permiti escrever uma verdadeira epopéia no espelho].

O que foi revelado à minha irmã que não conversa comigo foi a simples inscrição to change.

Gosto de escrever em inglês, porque costumo pensar em inglês.

Minha irmã não temeu invadir minha privacidade [não há nas famílias este tipo de temor] e não só descobriu meu infantil segredo como completou o to change com um risonho don’t worry! Digo risonho porque havia olhinhos e boquinhas em cada um dos os.

Chocada com a ousadia de uma irmã que, repito, não fala comigo, fiquei extasiada como se alguém novo, em quem eu nunca tivesse botado meus olhos, fosse capaz de perceber minhas mazelas psicológicas.

O chuveiro foi rapidamente trocado.

Minha irmã continuou indo tomar banho no meu banheiro e no mormaço, meio sauna que tudo se torna, viu no espelho as inscrições: to change/ don’t worry/ be happy!

Ela sentiu dores no abdômen de tanto rir. Gosto de imaginar.

A ironia está no fato de que nenhuma de nós pode acreditar numa tolice dessas. Eu não posso porque meu livro de cabeceira é “As Flores do Mal” de Charles Baudelaire. Ela não pode, pois se todos pudessem, despreocupando-se, ser felizes, de nada serviria a psicóloga que ela será. 

Minha irmã, depois de cair na risada, acho, fez um risco em cada uma das frases e escreveu com letras afetadamente tortas: Gosto de Paris!

Não pude evitar pensar que a embriaguez das pernas tortas das letras não fosse também a embriaguez da solidão de minha irmã.

Não pude mais imaginá-la caindo na risada, só enxergava a rudez de seu cenho cerrado.

Depois de meu banho nº 10, mesmo com muito sono, escrevi no espelho: Não, Capadócia/Turquia. 

Minha irmã toma 01 banho por dia [o que parece pouquíssimo higiênico], agora, sempre em meu banheiro. Continua sem trocar uma palavra falada comigo, continua a roçar com importância só a cabeça do gato.

Mas escreve coisas engraçadas e interessantes, essa minha irmã! Ao menos no meu espelho.

As frases curtas num espelho agora nosso, tornaram-se aquele dia simbólico de nossa lembrança infantil: a irmãzinha quatro anos mais velha vê a mãe chegar em casa com uma outra bebê no colo.

A bebê parece uma boneca, cheira bem e é pequenina, mas consegue ser intimamente ameaçadora.

Divide-se o quarto. Dividem-se os presentes de Natal e cancelam-se os do Dia das Crianças. 

Crescem as meninas, separam-nas de quarto. 

Crescem disputando a sobrevivência sem se falarem. Até que notam que a vida é somente sina e passam a compartilhar a pena que sentem do mundo.